O corpo melancólico de Ana Mendieta {e outros corpos que assim virão

É impressionamentemente cristalino, para mim, perceber o trabalho da artista plástica Ana Mendieta como uma extensão física de seu corpo melancólico.

E o que pretendo com esse texto não é um estudo, nem uma análise de seu trabalho/processo, mas observações que possam ser úteis para um projeto de pesquisa que possivelmente relacionará corpo, melancolia, erotismo & poéticas [o poema, a fotografia, o registro imagético-poético do corpo (a música, talvez?)]; o produto físico dessa junção em forma, movimento, tempo e lugar. Esquizo e deveras cru, aqui está exposto.

[Abrindo um pequeno _e muito justo_ colchete sobre como cheguei à Mendieta: durante uma inusitada cena doméstica, a Erika me disse que eu adoraria conhecer o trabalho de Ana Mendieta, que era a minha cara. Voilà, chamamos o Lucas, nosso grande conoisseur das fine arts, que sabia onde estava o livro (“Cecil, é realmente a sua cara!”) e lá me deparei com Unseen Mendieta – The Unpublished Works of Ana Mendieta. O que vi foi sangue, cinza, morte, nudez, sacrifício e o registro físico de uma impotência para com o próprio corpo.]

Alguns vídeos encontrados na internet, que mostram Mendieta durante seus processos, revelam certa inabilidade da artista com o próprio corpo e com o mundo ao seu redor. A impressão é a de que, via corpo, ela estivesse a buscar alguma ligação com a realidade, já que parecia sentir-se não muito parte do ambiente que a cercava. O aparente desentendimento de Mendieta com seu corpo, e a tentativa de apreendê-lo, de alçá-lo de fora, de manipulá-lo, deformá-lo, transformá-lo em algo que pudesse ser tocado, sobretudo por ela mesma, ganhou uma dimensão estética interessante e, desde que passei a observar seu trabalho, fui confirmando essas e outras impressões.

Ana Mendieta nasceu em Cuba, em 1948. Filha de poderosos políticos cubanos, foi criada em um grupo social privilegiado e sua infância foi cercada de ricas experiências com a cultura latina. Logo depois da revolução cubana de 1959 Mendieta foi enviada _ainda novíssima, aos 13_ para Iowa em uma missão católica que tinha como objetivo ajudar jovens cubanos a escaparem da doutrinação comunista. Consta que foi a partir daí que Mendieta passou a vivenciar uma realidade brutal de discriminação, rejeição e abuso.

Mendieta não tinha parentes nos Estados Unidos, morou em várias instituições, inclusive as que abrigavam jovens com deficiências mentais ou com tendências criminosas. A adolescência foi assim instável, sob o signo do abandono. Em 1966 ela se reconectou com sua mãe, deu início aos estudos em belas artes e passou a esboçar a materialização da questão do não-lugar, do abandono, do não-pertencimento a alguma cultura. Logo depois, 15 anos após o rompimento, Mendieta voltou a se reconectar com a cultura de onde veio, relacionando-se com a comunidade cubana em Miami. E, já nos 80, Mendieta embarcou para Cuba onde passou a desmistificar o medo e o estranhamento ao único lugar a que se sentia pertencer. Ela escreve: “Estava com medo antes de ir, porque sinto que aqui tenho vivido com essa coisa obsessiva na cabeça _e se eu me der conta de que isso não tem nada a ver comigo? Mas no minuto em que cheguei lá foi toda essa coisa de pertencer novamente” (Blocker, 1999, Viso 2004).

A partir desses dados fica evidente a questão da busca por uma identidade, diretamente ligada ao espaço cultural interrompido e violentado de Ana Mendieta, do processo perceptivo deslocado e brutalizado pela artista. Toda a efemeridade de seu trabalho me leva um pouco a este lugar da melancolia, um não-lugar onde Mendieta parece tentar se entender com seu corpo para dizer que ele é seu elo com o mundo com o qual não consegue se comunicar.

Não me cabe, aqui, descrever estes trabalhos ou dissecá-los, mas apenas tomar a questão da estrutura temporal do processo perceptivo de Ana Mendieta como algo derivado de uma sombra muito dura, semelhante à da fotógrafa Francesca Woodman, semelhante à do poeta Paul Celan… indo mais longe talvez a música de Elliott Smith e de Fiona Apple também cheguem perto desse lugar, para ser bem contemporânea.

Mendieta carimbou paredes com seu corpo embebido em sangue de animais, ateou fogo na sombra de seu corpo sobre a terra, cobriu-se com penas, deformou-se para fotografar-se. E a não-surpresa de suicidar-se como obra última: em 85, jogou-se da janela de seu apartamento em Nova York. Na vida vida curta como artista, Mendieta deixou um grande e reconhecido legado.

Seu corpo ficou aqui, ambíguo, erodido, sob a iminência do desaparecimento pelo tempo [dada a natureza de seu processo estruturado em presença-ausência, sombra-cicatriz], sacrificado, silente [será?] e com uma temperatura melancólica elevada e constante.

Há muito o que falar, pensar e perceber sobre ela, mas por enquanto fico por aqui, tentando ver por onde irão os tentáculos dessas observações.

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Uma resposta para O corpo melancólico de Ana Mendieta {e outros corpos que assim virão

  1. erica disse:

    numa busca do google caí aqui, desde a primeira palavra que li já sabia que algo me pertencia por dentro, o sinalete tocou e eu vi uma foto sua.
    somos uma, sou tão isso tudo, só que de um jeito seu.
    te amo epifania
    {magni}

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